Para iniciar minha apresentação sobre Domícia, gostaria de destacar algumas informações que podem parecer óbvias para alguns leitores, mas que considero essenciais como ponto de partida para aqueles menos familiarizados com o tema. No contexto deste texto, “consorte” refere-se à esposa de alguém, enquanto “dinastia” designa um grupo de pessoas da mesma família que ocupam posições de poder na administração, na religião e no comando militar em Roma.
Partindo desse princípio, Roma, no século I da nossa era[3], foi governada por três grandes famílias. A primeira delas foi a dinastia júlio-claudiana, que abrange os imperadores Augusto, Tibério, Calígula, Cláudio e Nero. Em seguida, ocorreu um período conturbado em 69, conhecido como o “Ano dos quatro Imperadores”, no qual quatro homens de famílias distintas — Galba, Oto, Vitélio e Vespasiano — disputaram o poder imperial. Após esse período, teve início a dinastia flaviana, composta por Vespasiano e seus filhos, Tito e Domiciano. Por fim, a dinastia nerva-antonina deu continuidade ao governo imperial, com Nerva, Trajano, Adriano, Marco Aurélio e Cômodo.
As mulheres na Antiguidade Romana são, em geral, descritas nas fontes em função de suas ligações com pais, irmãos, maridos e filhos. Por isso, torna-se necessária uma leitura minuciosa e a contrapelo das documentações disponíveis, sejam elas escritas, sejam materiais, como moedas, estátuas e inscrições epigráficas.
Assim como a historiografia de nossa época revisita muitas de suas premissas, o século XIX consolidou imagens rígidas sobre a vida das mulheres romanas. Entre essas concepções, destacam-se duas: a premissa de que estariam restritas exclusivamente ao ambiente doméstico e a noção de que o pater familias as subjugava de forma irrestrita.
Este texto propõe apresentar uma mulher que não apenas rompeu com essas concepções, mas que também exerceu influência política, econômica e social em sua época, tornando-se uma personagem significativa para os estudos sobre gênero e poder na Antiguidade.
Domícia provavelmente nasceu em 11 de fevereiro de 53 (CIL, 14, 2795), sendo pentaneta, pelo lado materno, de Augusto, o primeiro imperador. Isso significa que, ao se casar, seu marido também teria uma conexão com a primeira dinastia imperial. Seu pai, Corbulão, foi um renomado general e cônsul em 39 (Tac., Hist., II. 76, 7-8)
Domícia se casou duas vezes: a primeira, entre 68 e 69, com Lúcio Elio Lâmia Eliano, cônsul em 80 (Cass. Dio, 65, 3,4), e a segunda, em 70, com Domiciano, imperador de 81 a 96 (Suet., Dom., 3).
O casamento de Domícia e Domiciano ocorreu no início do governo de Vespasiano. Caso essa união gerasse um neto, isso selaria uma conexão sanguínea direta entre as duas famílias. Essa possibilidade revela o capital de influência de Domícia. Tanto que, ao nascer seu herdeiro, ela recebeu o título de Augusta, concedido às mulheres da família imperial. Após a morte do seu filho, a criança foi deificada, como evidenciado nas moedas da época (Fig. 01) e relatado por Suetônio (Dom. 3).

Fig 1.: Moeda de Domícia como Augusta e seu filho deificado.
Inscrição no anverso: DOMITIAE AVG IMP CAES DIVI F DOMITIAN AVG
(Tradução: Para a Augusta Domícia [mãe] do filho Divino do Imperador César Augusto Domiciano).
Inscrição no reverso: DIVI CAESAR MATRI (Tradução: Para a mãe do divino César).
Fonte: https://ikmk.smb.museum/object?id=18233252. Acesso em: 20 dez. 2022.
Domícia tornou-se uma figura relevante nos estudos de gênero, especialmente por ter sido acusada de adultério, exilada e, ainda assim, ter conseguido retornar a Roma. Segundo as leis da época, mulheres nessa situação eram estigmatizadas e, na maioria dos casos, morriam no exílio. No entanto, as fontes indicam que, a pedido do Senado e do povo, Domícia foi autorizada a regressar (Suet., Dom. 13.1). Esse fato evidencia as conexões que ela mantinha com grupos influentes de seu tempo, demonstrando uma rede de apoio e influência notável que possibilitou seu retorno (OGAWA, 2023).
Outro episódio que impactou negativamente sua memória foi a suspeita de envolvimento na conspiração para a morte de Domiciano, em 96, embora não haja confirmação definitiva sobre sua associação. No entanto, um indício que corrobora a hipótese de sua não participação no complô é o fato de que Domícia continuou a se vincular a ele, como evidenciado pelas inscrições de sua olaria datadas de 123.
“Ex f(iglinis) Domitiae Domitiani Sulp(icianis)
Paetino et Aproniano / co(n)s(ulibus)” (CIL, 15, 548).
Tradução: Da Olaria Sulpiciano de Domícia, esposa de Domiciano, sob o consulado de Petino e Aproniano.
Mesmo após a morte de seu marido e a condenação de sua memória (damnatio memoriae) — um processo pelo qual se buscava apagar registros escritos e materiais de um indivíduo —, Domícia não parece ter sofrido as mesmas represálias. Essa distinção pode ser observada nas moedas a seguir, que evidenciam a manutenção de sua posição e identidade pública.

Fig 2.: Moedas do casal imperial
Fonte: Roman Provincial Coinage – Disponível em: https://rpc.ashmus.ox.ac.uk/coins/2/1262. Acesso em: 21 dez. 2022.
Existem indícios de que Domícia possuía uma considerável fortuna, uma vez que era proprietária de uma olaria altamente lucrativa na cidade de Gabii, como demonstrado na inscrição já mencionada. Essa propriedade estava localizada na borda de uma cratera vulcânica, e, após o incêndio de 64, as reconstruções de Roma exigiam o uso de materiais de construção resistentes ao fogo (Fig 3). Isso sugere que Domícia detinha um grande capital econômico, capaz de atender a essas novas exigências.

Fig 3.: Gabii em relação à Roma
Fonte: KAY, 2013, p. 284
Gostaria de destacar duas menções importantes para a apresentação de Domícia: a primeira diz respeito ao fato dela ter financiado escritores, como Flávio Josefo (Vit., 76.429), o que revela seu interesse em influenciar a forma como sua memória seria retratada. A segunda, após sua morte, em 140, foi a construção de um templo em sua homenagem. Esse evento, realizado durante os governos subsequentes, atesta a continuidade de sua relevância ao longo de três dinastias imperiais: como membro da dinastia Júlio-Claudiana, consorte da dinastia Flávia e, finalmente, homenageada pelos imperadores Antoninos.
Domícia, embora tenha sido uma figura sobre a qual poucos estudiosos se debruçaram em comparação às primeiras Júlio-Claudianas, revela-se, à medida que é analisada, uma personagem de singular relevância. Sua história não apenas ilumina os estudos de gênero, mas também oferece uma chave ímpar para entender o contexto histórico em que viveu, desafiando as narrativas estabelecidas e abrindo novas possibilidades de interpretação.
Bibliografia:
Fontes antigas:
CÁSSIO DIO. Dio: The Julio-Claudians: Selections from Books 58-63 of the Roman History of Cassius Dio. Cambridge University Press, 2023.
JOSEPHUS, Flavius. Life of Josephus. Trad. Steve Mason. Boston. Brill. 2001.
SUETÔNIO. A vida dos doze Césares. São Paulo: Prestígio, 3. ed. 2002.
TÁCITO. Historiarvm libri. Estudo e tradução. Trad. DE SOUSA SILVA, Frederico. 2014. Tese de Doutorado. Universidade de São Paulo, 2014.
Referências Bibliográficas:
KAY, Stephen. Geophysical survey of the city of Gabii, Italy. In.: JOHNSON, Paul; MILLETT, Martin. Archaeological Survey and the City, p. 283-302, 2013.
OGAWA, Milena Rosa Araújo. Domícia Longina: gênero, agência e poder na Roma imperial no século I d. C. Orientadora: Carolina Kesser Barcellos Dias. Coorientador: Carlos Augusto Ribeiro Machado. 2023. 424 f. Tese (Doutorado em História) – Instituto de Ciências Humanas, Universidade Federal de Pelotas, Pelotas, 2023.
[1] Este texto faz parte da pesquisa de doutorado financiada pela CAPES (2019-2023). Agradeço à instituição de fomento mencionada, à Universidade Federal de Pelotas, aos meus orientadores Carolina Kesser e Carlos Machado e, em especial, à Profa. Daniele Gallindo e seus orientandos pelo convite.
[2] Doutora, mestra e bacharela em História pela UFPel. Especialista em Direitos Humanos e Cidadania e licenciada em História pela Universidade Federal do Pampa (UNIPAMPA – campus Jaguarão). Coordenadora do Grupo de Trabalho de História Antiga (GTHA) da Associação Nacional de História (ANPUH), Seção Rio Grande do Sul – Gestão 2024-2026. Atualmente professora substituta do Departamento de Metodologia do Ensino na Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Foi professora do curso de Ciências Humanas na UNIPAMPA – campus São Borja. Coordenadora do Laboratório de Estudos sobre a Cerâmica Antiga (LECA – UNIPAMPA). E-mail: ogawa_milena@hotmail.com.br. Lattes: http://lattes.cnpq.br/2471296250383217.
[3] Todas as datas mencionadas neste texto referem-se à nossa era, tornando desnecessário o uso das abreviações “d.C.” /”a.C. “.
Publicado em 27 de Maio de 2025.
Como citar: OGAWA, Milena Rosa Araújo – Domícia Longina: a única consorte da dinastia flaviana. Blog do POIEMA. Pelotas: 27 mai. 2025. Disponível em: https://wp.ufpel.edu.br/poiema/domicia-longina-a-unica-consorte-da-dinastia-flaviana Acesso em: data em que você acessou o artigo.