Conflitos e confluências: Redefinindo o papel do domínio Mongol na história da Rus’

Olga Pisnitchenko[1]

O Jugo Tártaro-Mongol é um dos episódios mais marcantes da história medieval eslava, sendo frequentemente descrito como um período de devastação, submissão e transformação para a Rus’[2]. No entanto, a complexidade desse fenômeno vai além da mera conquista militar. O termo “jugo”, por si só, carrega uma carga simbólica que reflete a maneira como a historiografia russa, especialmente a partir do século XIX, construiu sua memória coletiva em torno do período de dominação mongol. Além disso, como evento e como período histórico, o Jugo Tártaro-Mongol representou não apenas um desafio à unidade dos principados da Rus’, mas também uma oportunidade de reestruturação política e cultural que moldou o futuro do território.

Neste breve ensaio, apresentaremos o tema e exploraremos o Jugo Tártaro-Mongol sob três perspectivas principais: como evento, analisando a invasão inicial e a imposição do domínio mongol; como período histórico, destacando suas principais características, fases e impactos de longa duração; e como termo, avaliando a origem e os usos historiográficos da expressão. Ao abordar essas dimensões, buscamos oferecer uma visão crítica e abrangente sobre um dos capítulos muito discutidos da história da Rus’, revelando alguns aspectos dessa discussão e demonstrando a complexidade das relações entre a Rus’ e a Horda de Ouro.

O apogeu político da Rus’ de Kiev pode ser atribuído ao reinado de Yaroslav, o Sábio (1019-1054), quando este consolidou sua influência política, econômica e cultural, promovendo alianças estratégicas por meio de relações diplomáticas e matrimoniais com as principais casas reais da Europa Ocidental, Oriental e do Norte. Entre os exemplos mais notáveis está o casamento de sua filha Ana da Rus’ com Henrique I da França, que a tornou rainha consorte e mãe do futuro rei Filipe I. Outro caso relevante foi a união de sua filha Elisaveta Yaroslavna com Haroldo III da Noruega, fortalecendo as relações com os reinos escandinavos, enquanto sua filha Anastácia da Rus’ casou-se com André I da Hungria, garantindo laços com o centro da Europa. Além disso, seu filho Iziaslav Yaroslavich casou-se com Gertrudes da Polônia, filha do rei Miecislau II, reforçando a aliança com os poloneses. O matrimônio de Vsevolod I, outro filho de Yaroslav, com uma princesa bizantina consolidou as conexões com o Império Bizantino, parceiro estratégico da Rus’ tanto comercialmente quanto culturalmente. Essas alianças demonstram a inserção da Rus’ de Kiev na rede de poder da cristandade medieval e seu papel como uma das principais entidades políticas da época.

No entanto, a partir do final do século XI, a unidade política da Rus’ começou a se deteriorar, resultado de disputas sucessórias, descentralização do poder e fortalecimento das elites regionais. A estabilidade foi comprometida ainda antes da morte de Vladimir Sviatoslavich (Vladimir, o Grande), que governou de 980 a 1015. Ele distribuiu os principais centros urbanos entre seus 12 filhos, o que resultou em rivalidades entre os herdeiros. Após sua morte em 1015, irrompeu uma guerra civil, durante a qual a maioria dos seus filhos foi morta. A disputa entre Yaroslav e Mstislav de Tmutarakan definiu os rumos da Rus’, sendo que Yaroslav consolidou seu poder apenas em 1036, após a morte de seu irmão.

A fim de garantir a estabilidade política e um sistema de sucessão minimamente organizado, foi instituído o sistema de rota, um modelo de herança patrilinear que estabelecia a sucessão dos irmãos mais novos antes dos filhos do monarca. Esse modelo, ao invés de garantir a coesão da Rus’, intensificou os conflitos, pois frequentemente os knyazi mais jovens desafiavam a autoridade dos mais velhos, e os filhos dos governantes mortos tentavam reivindicar seus direitos hereditários.

A instabilidade sucessória gerou uma descentralização crescente dentro da Rus’. Com a fragmentação do poder, nobres e elites locais começaram a fortalecer suas posições dentro dos principados, resistindo à autoridade do grão-knyaz de Kiev. O aumento da propriedade fundiária dos boiardos e o desejo das elites locais de ter seus próprios governantes aceleraram esse processo.

O Concílio de Liubech, convocado por Vladimir Monomakh, em 1097, foi um encontro entre os knyazi da Rus’ na tentativa de estabelecer um novo equilíbrio de poder. Nesse concílio, foi proclamado o princípio de que “cada um deve manter sua própria terra”, o que marcou a institucionalização da fragmentação da Rus’.

…reuniram-se em Liubetch, para estabelecimento da paz, e falaram entre si, dizendo: “Por que arruinamos a terra russa, mantendo contendas entre nós mesmos? Pois os polovetsianos trazem cizânia à nossa terra, e estão alegres por haver guerra entre nós. Que tenhamos, de agora em diante, um só coração, e guardemos a terra russa; que cada um mantenha seu patrimônio… E, com isso, beijaram a cruz: “Se alguém, a partir de agora, levantar-se contra outro, então contra ele iremos todos…” (Simone, 2019, p.224).

A partir desse momento, surgiram dinastias regionais independentes, reduzindo ainda mais o papel central de Kiev.

A partir do século XII, a Rus’ de Kiev entrou em um processo de fragmentação que resultou na divisão do território em múltiplos principados, variando entre 13 e 18, cada um governado por dinastias locais ou administrado sob forte influência municipal. Alguns principados como Galícia, Chernígov, Suzdal e Smolensk foram dominados por linhagens familiares estabelecidas, enquanto outros, como Pereiaslavl e Kiev, permaneceram como centros disputados entre diferentes casas dinásticas. A luta pelo controle de Kiev, especialmente entre os Monomakhovichs e os Olgovitches, refletia a crescente descentralização do poder. Novgorod e Pskov se destacaram como repúblicas aristocráticas, limitando o papel dos knyazi e consolidando uma governança mais autônoma. O declínio da dinastia galiciana levou à unificação de Galícia e Volínia sob Roman Mstislavich em 1199, mas sua morte em 1205 reacendeu disputas pelo trono. A fragmentação da Rus’, como afirmam os historiadores russos desde o século XIX, não apenas enfraqueceu a unidade política do território, mas também expôs a região a invasões externas, culminando na conquista mongol do século XIII.

A. A. Gorsky argumenta que o sucesso da invasão mongol na Rus’ de 1237-1241 foi, em grande parte, determinado pela esmagadora superioridade militar dos invasores, que já haviam conquistado China, Corásmia, Hungria e Polônia. No entanto, o autor destaca uma particularidade da campanha na Rus’, que muitas vezes passa despercebida: ao contrário de outras regiões, os mongóis encontraram pouca resistência em batalhas campais. A maior parte da resistência ocorreu dentro das cidades sitiadas, com exceção das primeiras campanhas no Principado de Riazã e no Nordeste da Rus’ (1237-1238), onde houve algumas tentativas de combate em campo aberto, como em Kolomna e no rio Sít’.

Na Rus’ do Sul, os knyazi se mostraram inertes, mesmo sabendo do avanço mongol desde 1237. Quando os mongóis cercaram Chernígov em 1239, o knyaz Mstislav Glebovich tentou intervir, mas foi derrotado. Mikhail de Chernígov e Daniel da Volínia fugiram sem lutar, deixando suas terras vulneráveis. Esse comportamento contrastava com a ação decisiva dos knyazi da Rus’ em 1223, quando, apesar da derrota na batalha do rio Kalka, houve uma tentativa coordenada de resistência.

Gorsky (Gorski, 2004) explica essa diferença pelas mudanças na estrutura política da Rus’ no século XIII. Na época da invasão, quatro grandes dinastias dominavam diferentes regiões (Chernígov, Smolensk, Volínia e Suzdal), mas, em vez de se unirem contra os mongóis, estavam envolvidas em disputas internas pelo controle de Kiev, Galícia e Novgorod. Entre 1230 e 1240, uma guerra civil contínua esgotou as forças dos principados do sul, tornando impossível uma defesa unificada contra os mongóis. Mesmo após a devastação do Nordeste pelos mongóis, os knyazi do sul continuaram a lutar entre si, ignorando a ameaça iminente.

Assim, Gorsky (Gorski, 2004) conclui que a desunião política e os conflitos internos da Rus’ desempenharam um papel fundamental na falta de resistência contra os mongóis, tornando a conquista de Batu Khan relativamente fácil e devastadora.

No ano de 1223, a Rus’ deparou-se com um inimigo até então desconhecido: destacamentos mongóis surgiram nos limites de suas terras e enfrentaram o exército russo-cumano às margens do rio Kalka. Esse embate chamou a atenção dos cronistas da época, que se preocuparam sobretudo em entender quem eram aqueles invasores “tártaros” e por que sua aparição se deu naquele momento. Para eles, mais do que uma classificação étnica, interessava a dimensão simbólica desses “inimigos desconhecidos”, frequentemente associada a textos apócrifos de caráter escatológico, como o “Apocalipse de Metódio de Patara”[3].

A derrota no rio Kalka foi interpretada de modo quase unânime como um castigo divino aos rus. As crônicas mais antigas, como a de Lavrêntiev e a Primeira de Novgorod, enxergaram o revés militar como retribuição pelos pecados cometidos, ou mesmo como advertência para uma correção espiritual. Curiosamente, a aliança com os cumanos/polovets foi avaliada de forma bastante negativa, enquanto os mongóis ainda não eram descritos como pagãos. Somente após a devastadora campanha de Batu Khan (1237-1240), que revelou a velocidade e a escala da ofensiva mongol, formou-se uma visão profundamente distinta dos “tártaros”. Nesse momento, os cronistas passaram a atribuir um sentido escatológico à invasão, ressaltando as dimensões de ruína e calamidade para a terra Rus’.

A campanha de Batu Khan, iniciada pouco mais de quinze anos depois da batalha do rio Kalka, alterou radicalmente a organização política e social da Rus’, inaugurando um período de quase um quarto de milênio de convivência entre comunidades diferentes, mas por vezes coincidentes em certas práticas e interesses. Assim se consolidou a relação de suserania entre a Horda de Ouro e os principados rus, que na historiografia russa ganhou a denominação de “Jugo Tártaro-Mongol”. No século XIX em diante, o termo “jugo” adquiriu forte conotação de opressão; porém os historiadores de hoje com cada vez mais frequência apontam que, esse quadro não se resumiu apenas à submissão, incluindo também negociações, concessões e, em certos momentos, formas de cooperação. A maneira como essa invasão e o subsequente domínio mongol foram percebidos constitui um dos pontos centrais na construção da identidade russa, sendo também objeto de leituras divergentes, tanto no passado quanto na atualidade, em razão de interesses políticos e culturais.

Após as campanhas devastadoras de Batu (1237-1242), as terras russas ficaram formalmente fora do território direto do império mongol, mas sob a autoridade suprema dos khans (Danilevskiy, 1999, p. 123-131; Danilevskiy, 2010 p. 139-147). Os conquistadores mongóis empregaram dois métodos principais para governar os territórios subjugados: o governo direto por meio de sua própria administração ou o indireto – por intermédio dos governantes locais, mantendo-os no poder (Danilevskiy, 2010, p. 177-184). Em relação à Rus’, os mongóis optaram pela segunda alternativa: os knyazi permaneceram em suas terras, mas deveriam reconhecer a autoridade do khan e cumprir suas ordens; (Danilevskiy, 2010, p. 225-233). Já em 1243, o Grão-Knyaz de Vladimir, Iaroslav Vsevolodovich, foi convocado à corte de Batu e recebeu dele um yarlık – uma licença de governo – que lhe conferia o direito de governar (Danilevskiy, 2010, p. 183-191). A partir deste momento, estabeleceu-se o sistema de vassalagem: todos os knyazi russos deveriam comparecer pessoalmente à corte da Horda para confirmar seus direitos ao trono, acompanhados de ricos presentes e submetendo-se a rituais de submissão, interpretados pela aristocracia militar eslava como extremamente humilhantes.

O yarlık para o governo tornou-se o elemento central da dependência política da Rus’. Ele não era apenas um documento formal – na prática, o yarlık servia como um mecanismo de vassalagem, um símbolo de lealdade do knyaz ao khan. Os governantes mongóis utilizavam habilidosamente o sistema de emissão dos yarlıks para fomentar a divisão e a rivalidade entre os knyazi rus (Gorsky, 2004,p. 232–241). Os khans conscientemente semeavam discórdia entre os knyazi, concedendo yarliks aos candidatos mais favoráveis, incentivando, assim, disputas pelo trono e impedindo a união da população local contra a Horda (Gorsky, 2004, p. 234–242). Nas hagiografias, por exemplo, do knyaz de Chernigov, Mikhail, é relatado que “os costumes vis eram os seguintes: os knyazi da Rus’ se desentendiam entre si e, para conquistar a posição mais privilegiada aumentavam os presentes exigidos, conforme recebiam a benevolência tártara” (Gorsky, 2004, p. 237-244). Obter o yarlık era impossível sem uma humilhação pessoal perante o khan e o reconhecimento da própria dependência.

Na corte da Horda, os knyazy eram obrigados a realizar rituais de reverência, chegando a se prostrar (o “chelobitie”) e cumprir outras exigências protocolares que sublinhavam seu estatuto submisso. Em caso de desobediência, ameaçava-se com severas punições – assim, o knyaz de Chernigov, Mikhail, que recusou seguir o ritual mongol, foi executado na corte de Batu, em 1246 (Gorsky, 2004, p. 457-460), O khan detinha o poder supremo sobre os knyazy da Rus’: ele podia depor qualquer um deles, nomear outro ou, em caso de insubordinação, ordenar sua morte e executar pessoalmente a sentença (Kobrin; Yurganov, 1991, p. 56-57) Enquanto no sistema senhorial ocidental o vassalo tinha obrigações mútuas com seu suserano, na Horda a dependência dos governantes da Rus’ se aproximava da condição de súditos de um monarca despótico (Kobrin; Yurganov,1991, p. 56-57).

Nos primeiros anos após a conquista, os mongóis instituíram na Rus’ o cargo de “basqak” – seus representantes e coletores dos tributos. Os territórios de maior importância para a Horda, como Kiev – a antiga capital –, foram submetidos a cobrança pesada, com a imposição de um “basqak” para supervisionar o recolhimento (Danilevskiy, 2010, p. 258-266) Na Rus’ do Nordeste (a terra de Vladimir-Suzdal), também atuavam “basqaks”, embora a tributação incidisse apenas sobre a população masculina adulta (Danilevskiy, 2010, p. 260-268). Em regiões mais afastadas, como a república de Novgorod, e no Principado de Galícia-Volínia, a Horda optou desde o início por apoiar-se nos governantes locais, dispensando a introdução do basqak e atribuindo a cobrança diretamente aos knyazi (Danilevskiy, 2010, p. 266-274). Essa diferença se justificava pelo cálculo geopolítico: regiões distantes das estepes, que faziam fronteira com as terras não conquistadas da Europa, eram tratadas pelos mongóis de forma mais “aliada”, enquanto os centros vitais da Rus’ permaneciam sob rigoroso controle (Danilevskiy, 2010, p. 250-258; Gorsky, 2004, p. 246-254). Contudo, já no final do século XIII, em toda a Rus’ consolidou-se o sistema no qual os tributos eram recolhidos pelos knyazi locais e não pelos administradores da Horda (Danilevskiy, 2010, p. 262-270).

Essa medida, embora ostensivamente amenizasse a presença dos conquistadores, significava que os knyazi se incorporavam ao sistema administrativo da Horda, já os Grão-knyazi tornaram-se os principais agentes fiscais do khan nas terras da Rus’. Vale ressaltar que os governantes locais passaram a perceber a soberania do khan como legítima; os khans passaram a ser designados como “czar” – ou seja, governantes supremos, equiparados aos imperadores bizantinos (Danilevskiy, 2010, p. 272-280). As crônicas da Rus’ frequentemente chamavam os khans de “czares”, reconhecendo neles a autoridade suprema instituída por Deus para punir os pecados do povo. A igreja ortodoxa também, em geral, instava a submissão ao “khan dado por Deus” em troca da manutenção da paz. Esse status quo persistiu por um longo período, em parte porque a sociedade rus temia que a Horda pudesse, a qualquer momento, anular a autonomia dos knyazi (Danilevskiy, 2010, p. 274-283). Por exemplo, nos monumentos literários da época da Batalha de Kulikovo (1380), já se encontra a ideia de que o temido “Temnik” Mamai pretendia não apenas punir a Rus’, mas estabelecer seu domínio pleno, convertendo o povo à sua fé e destruindo a fé cristã (Danilevskiy, 2010, p. 278-286). Embora esses relatos possam refletir mais os temores do que as intenções reais, o fato de tais declarações existirem revela a percepção do khan como potencial governante supremo da Rus’.

O sistema de dependência da Rus’ em relação à Horda sofreu modificações ao longo dos quase 250 anos de dominação. Se a metade do século XIII e o início do século XIV foram marcados pelo controle mais rígido (com basqaks, execuções de knyazi insubordinados e a cobrança regular do tributo), com o tempo o controle foi se atenuando. A partir do início dos anos 1260, após a fragmentação do império mongol unificado, os principados da Rus’ passaram a depender apenas do Ulus Djuči (Horda de Ouro) e deixaram de enviar emissários ao grande khan em Karakorum (Danilevskiy, 2010, p. 225-233). Ao final do século XIII, os basqaks haviam sido retirados, e a administração mongol já não estava presente diretamente nas cidades da Rus’ do Nordeste (Danilevskiy, 2010, p. 262-270). Os khans da Horda passaram a adotar uma política de governo indireto, conferindo ao knyaz de maior importância – o Grande Knyaz de Vladimir – e utilizando-o como instrumento para centralizar a cobrança do tributo em todas as terras russas.

Gradualmente, o status do Grão-Knyaz consolidou-se na dinastia dos knyazi de Moscou: a partir do início do século XIV, Moscou, habilidosamente, conseguiu que os khans lhe concedessem o yarlık com mais frequência que aos seus concorrentes. Assim, Moscou passou a atuar como representante da Horda nas relações com os demais principados. Essa centralização teve dois desdobramentos. Por um lado, apenas um principado centralizado e poderoso seria capaz de, eventualmente, desafiar a Horda e conquistar a liberdade (eventos dos anos 1470 – a parada do rio Ugra em 1480, quando Ivan III cessou o pagamento do tributo e a Horda não conseguiu puni-lo). Por outro lado, essa mesma centralização levou à instalação de um governo autocrático do grande knyaz (posteriormente, do czar), muito mais rígido do que no período pré-mongol (Danilevskiy, 2010, p. 15-23). Muitos estudiosos veem nas práticas políticas da Horda um precursor do autocratismo moscovita: o modelo de poder absoluto do khan e a ausência de direitos dos súditos foram, em grande parte, assimilados pelos knyazy de Moscou (Danilevskiy, 2010, p. 394-402). Igor Danilevskiy observa que a submissão à Horda criou condições propícias para o surgimento de tendências despóticas: os knyazi, transformados em servos do khan, não podiam tolerar a independência de seus próprios conselheiros e guerreiros (Danilevskiy, 2010, p. 407-415). Assim, houve uma evolução do poder do knyaz, que passou de “primeiro entre iguais” na antiga doutrina para um representante absoluto do khan, intolerante a qualquer oposição. Essa tradição tornou-se a base para o futuro poder do czar.

A conquista mongol trouxe impactos profundos e controversos à economia da Rus’, especialmente no período que se segue às primeiras expedições de Batu Khan. A corrente historiográfica majoritária sublinha o caráter destrutivo das invasões, que teriam causado danos demográficos e econômicos de grande monta. Segundo Danilevskiy (2010, p. 281-290), cidades inteiras como Riazã, Vladimir e Kozelsk foram “arrasadas” e parte considerável da população foi morta ou escravizada. As crônicas retratam o colapso de inúmeros centros de artesanato e comércio, agravado pelas dificuldades de retomar plantações devastadas, provocando um possível declínio demográfico que teria atingido de 30% a 50% da população local. Nesse cenário, historiadores soviéticos e diversos estudiosos contemporâneos apontam que o prolongado pagamento de tributos — o “vyvod” e outras exações — levou à estagnação econômica, pois extraía recursos vitais (prata, grãos, peles) sem gerar contrapartida de investimento ou proteção efetiva.

Embora a presença mongol tenha terminado com as grandes devastações iniciais, os relatos das crônicas descrevem que a fiscalização sistemática dos basqaks e o recolhimento de impostos extraordinários, muitas vezes acompanhados de violência, mantiveram o clima de penúria. A insatisfação popular culminou em revoltas como a de 1262, contra o “fardo excessivo” imposto pela Horda (Danilevskiy, 1999, p. 43-51). Estima-se que o tributo anual chegasse a 10% do produto total da economia, em uma sociedade majoritariamente agrária, o que se refletiu em escassez de recursos para comércio e desenvolvimento urbano. Relatos do início do século XV confirmam que, mesmo após cerca de 150 anos, viajantes estrangeiros ainda descreviam a Rus’ como empobrecida, com cidades de madeira pouco povoadas, indício de que a região não se recuperara plenamente.

Em contraste, há uma vertente de pesquisadores, notadamente influenciados pelas ideias da escola eurasiática (N. Trubetskoy, L.N. Gumilev), que enxergam alguns aspectos positivos na inclusão da Rus’ no Império Mongol. Para esses autores, ao se integrar ao vasto território da Pax Mongolica, a Rus’ teria obtido uma relativa proteção contra inimigos externos e expandido, em certa medida, suas rotas comerciais. Mercadores e artesãos rus, sobretudo em regiões como Novgorod, passaram a ter acesso indireto a produtos orientais, enquanto alguns mongóis absorveram conhecimentos técnicos e militares dos rus. Nesse ponto de vista, o pagamento de tributos seria uma contrapartida pelos benefícios de segurança e intercâmbio — embora, reconhecem, o peso fiscal quase sempre superasse qualquer vantagem.

Halperin (1985, p. 112) e outros estudiosos destacam que a maior parte das análises atuais ainda considera o efeito econômico global do domínio tártaro-mongol bastante negativo: as perdas decorrentes dos saques, somadas à exaustiva coleta de tributos e à lenta reconstrução das cidades, comprometeram o desenvolvimento social e econômico da Rus’ por gerações. Ao mesmo tempo, não se pode ignorar as influências mongóis nos campos administrativo e militar, bem como a consolidação de rotas comerciais. Dessa maneira, a historiografia mostra-se dividida: de um lado, predomina a percepção de devastação e atraso; de outro, alguns autores ressaltam o papel do domínio mongol na formação das futuras estruturas estatais e no estabelecimento de conexões que transcenderam os limites regionais.

Esse breve ensaio sobre o período conhecido como “Jugo Tártaro-Mongol” demonstra que o termo, embora consagrado pela historiografia russa do século XIX, carrega uma forte carga simbólica e ideológica que pode ocultar a complexidade das relações entre a Rus’ e a Horda. Por um lado, enfatizam-se a violência, as perdas demográficas e a imposição de vassalagem e tributos, o que caracteriza um período de submissão e devastação. Por outro, pesquisadores russos contemporâneos — incluindo A. A. Gorsky, V. V. Trepavlov , os seguidores do pensamento de L. N. Gumilev e estudiosos como S. V. Volkov — evidenciam nuances significativas, como intercâmbios culturais, negociações diplomáticas e adaptações institucionais.

Gorsky (2004), em suas análises, aponta que o conceito de “igo” ou “jugo” foi reforçado no século XIX para sublinhar a narrativa de sofrimento nacional, mas que, na prática, as relações com a Horda foram muito mais complexas, contribuindo inclusive para formas de administração centralizada na Rus’. Trepavlov (2008), por sua vez, destaca que o uso do termo “igo” tende a exagerar o caráter unicamente violento do domínio mongol, minimizando as transformações estruturais e as alianças pontuais que se desenvolveram. Já os seguidores de Gumilev (1989) (especialmente dentro da escola eurasiática) ressaltam aspectos positivos da integração à Pax Mongolica, como proteção fronteiriça e abertura de rotas comerciais, e veem o termo “jugo” como insuficiente para abarcar toda a gama de trocas culturais que se deram naquele contexto. Por outro lado, Volkov (2012) chama a atenção para o uso político contemporâneo dessa expressão, empregado para reforçar discursos patrióticos que enfatizam uma identidade russa construída em oposição a uma dominação estrangeira.

Em síntese, a historiografia russa atual aponta para a necessidade de interpretar o período de domínio mongol de forma mais nuançada, reconhecendo que “Jugo Tártaro-Mongol” simplifica um fenômeno historicamente multifacetado. As diferentes leituras — sejam elas focadas na destruição ou na adaptação, na submissão ou na interação construtiva — revelam o quanto esse momento permanece central para compreender a formação do Estado moscovita e a própria identidade russa. O debate entre os estudiosos sugere que, ao examinar esse capítulo decisivo da história, é fundamental conciliar a dimensão de opressão e catástrofe com os processos de aprendizado e reestruturação que marcam o período.

Referências

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[1] Doutora em História Medieval pela UFMG, professora de História Antiga e Medieval na UFRR. E-mail: pisnitchenko@gmail.com. Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/7442255544989392

[2] Na historiografia russa, o termo Rus’ designa o estado medieval de Rus’ de Kiev (séculos IX a XIII) e Rus de Vladimir-Suzdal que assumiu a primazia no século XIII e marcou a formação inicial dos povos eslavos do leste. Em contrapartida, Rússia refere-se à evolução política ocorrida a partir do Principado de Moscou, que mais tarde se consolidou como o Estado russo moderno. O uso e a aplicabilidade desses termos foram amplamente debatidos pelo historiador Leandro Cesar Neves, posição com a qual concordamos.

[3] Composto no século VII em língua síria, mas na tradição manuscrita medieval, atribuído ao mártir-santo Metódio Olímpio (Pátaro), falecido por volta de 311. São conhecidas versões em grego, latim e eslavo, além de fragmentos de uma tradução armênia. Essas obras exerceram uma influência significativa sobre o pensamento escatológico cristão na Idade Média. A obra busca compreender a conquista islâmica do Oriente Médio. São examinados numerosos aspectos da escatologia cristã, tais como a invasão de Gog e Magog, a revolta do Anticristo e a grande tribulação que precede o fim do mundo.

Publicado em 09 de Junho de 2025.

Como citar: PISNITCHENKO, Olga. Conflitos e confluências: Redefinindo o papel do domínio Mongol na história da Rus’ Blog do POIEMA. Pelotas: 09 jun. 2025. Disponível em: https://wp.ufpel.edu.br/poiema/conflitos-e-confluencias-redefinindo-o-papel-do-dominio-mongol-na-historia-da-rus Acesso em: data em que você acessou o artigo.