O desconforto e o encantamento: Quando eu ando eu costuro a cidade

          

           

A legitimidade e a importância da produção de Fabrízio Rodrigues, no contexto da arte contemporânea e da pesquisa em poéticas visuais, desenvolvida na universidade, independem das minhas palavras. Contudo, dada à efervescência da hora, do momento cultural artístico que vivenciamos é importante que nos movimentemos para criarmos interlocuções. Na escritura aqui redigida tentarei explicitar as inúmeras camadas que constituem um trabalho artístico, pois sim a produção artística a que me refiro tem densidade, espessura e muitas peles. Infelizmente, os saberes da arte não são partilhados como caberia a tão vasto e potente campo de conhecimento, dando a ver o imenso corpo prático/teórico que o constitui – o corpo da arte, impedindo e dificultando a prospecção das camadas. Ou seja, a maioria das pessoas não compreende que na superfície aparente encontrar-se-á a profundidade e, se essa nos provoca dúvidas – desconforto e/ou encantamento, poderemos encontrar as respostas nela mesma. É dessa arte que falo. “Quando eu me desloco eu costuro a cidade” apresenta estandarte, tapumes com pinturas, colagens, costuras, objetos e fotografias e vídeos que nos revelam um modo de conceber e ver o mundo muito peculiar e singular. Isso é arte, isso é o papel da arte. Rodrigues é artista visual e figurinista, tece, tece ideia, tece a ideia com arte, com arte tece a ideia, tece arte e a ideia com a vida e assim vai constituindo, o que metaforicamente pode ser considerado um imenso cerzido. Na exposição às obras são resultado de uma pesquisa em andamento desenvolvida no Mestrado em Artes Visuais da UFPel, na linha de pesquisa em Processo de Criação e Poética do Cotidiano sob minha orientação

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     O trabalho exposto é oriundo de uma investigação prática e teórica, ou seja de um processo de artista que envolve fazer e cognição. Podemos verificar diante das obras que há um conhecimento desenvolvido na mão/corpo que costura, agrega, cola, pinta, fotografa, coleta, aponta etc., instaurando diferentes efeitos que envolvem a atenção e o encantamento pelas dobras, pelos rococós, por um tal jeito barroco de subjetivação pelo cotidiano fabulado. Fabrízio cotejou a cidade de Pelotas e a reinventou, é essa cidade que é um dos motes de sua criação nesse momento – cidade e pessoas. Rodrigues revela seu envolvimento com os saberes que adquiriu para singularizar sua produção e sua experiência de caminhar pelas ruas de Pelotas, cidade localizada no extremo sul do país.  Em sua produção atual, conjuga o seu métier de figurinista e sua formação universitária em artes visuais. Ele encontra a cidade presente e seu passado, nos ícones diversos, no chafariz, no grafite, no pixo, nas rendas das toalhas de mesa, na luz rosa, nos doces, nos decorativismos, no charque, na lagoa, no arroio, nos violáceos, como também no burburinho, no grito, no silêncio de pelotenses e outros que por aqui passam. E, por meio desse encontro com o cotidiano vivenciado inicia as aproximações com o escopo teórico que o acolhe e desdobra o pensamento: “Andar como prática estética” de Francesco Careri, na teoria Queer e Camp desenvolvida por Judth Büttler, Donald Morton, Susan Sontag entre outros. E, a obra potencializa discussões e posicionamentos favoráveis e contrários, a camada reflexiva não é alcançada, pois então, os conceitos auxiliam o artista a contextualizar sua produção pela perspectiva da literatura e de autores do campo da arte, da filosofia, da psicanalise da cultura visual, sociologia, antropologia. Por isso a arte é considerada um porta aberta aos mais distintos conhecimentos, as mais distintas manifestações desse conhecimento – sensível e intelectivo. O Queer, conceito atrelado a exposição recentemente censurada também basila os escopo estético e teórico de Rodrigues. Segundo Louro (2004, p. 38) “Queer pode ser traduzido por estranho, talvez ridículo, excêntrico, raro, extraordinário”, e a essência de Camp, segundo Susan Sontag “[…] é a sua predileção pelo inatural: pelo artifício e pelo exagero” (SONTAG, 1987, p. 318).

      Coincidência ou não a exposição já estava planejada desde 2016, sem que o artista soubesse que haveria uma grande exposição na capital envolvendo o conceito. Diferentemente do que se pensa, a arte é viva e resistente, o conceito também, se desloca e é possível de encontra-lo em exposição aberta e é lá o que aqui lhes oferto como possibilidade de passear pela Pelotas apresentada por Fabrízio. A obra não é uma obra QUEER, é uma obra em que é possível identificar características comuns as outras produções artísticas atravessadas por questões encontradas na diversidade de gênero, evidenciada na “DRGTOPOGRAFIA”.  Ou seja, o método cunhado por ele como “Dragtopografia” é o relevo e o desenho de uma das camadas da cidade, na qual, as vezes longe da superfície, encontra-se a narrativa de quem mora na cidade, as drag queens.  Rodrigues fez um chamamento as drags da cidade de Montenegro, assim como havia sido realizado em Pelotas para cartografar o lugar que acolhe seu trabalho em exposição, nessa há fotos de pessoas de diferentes tipos de orientações sexuais, entre eles heterossexuais, lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais e transgêneros e seus depoimentos sobre a cidade.

       A “dragtopografia” concede ao artista os pontos para uma urdidura em que as linhas transpassam e fiam um tecido que cobre e descobre a superfície que é capaz de tecer e encorpar o deslocamento do artista pela cidade. Então, ao entrar no espaço expositivo tudo se alinhava: a cidade de Pelotas ao artista, vice versa, revelando o artista de Montenegro, as pessoas que alinhavam seu processo. No espaço da a ver o artista andarilho, visual e tecelão, Joãozinho Trinta, Clóvis Bornay, o pigmento rosa, a música clássica, os restos de manuais, com as memórias da vida, do caminhar, de conversas, de afetos, purpurinas e tudo mais que constitui um sujeito, artista, pesquisador, professor, figurinista e gay. Uma  exposição finalizando e uma obra em transformação implicada em um processo que não tem fim, imperdível coteja-la e impossível deixar de impregnar-se com as outras camadas.

Duda Gonçalves – artista visual, professora do Curso de Graduação e Mestrado em Artes Visuais do Centro de Artes da UFPel, lider do Grupo de Pesquisa Deslocamentos, Observâncias e Cartografias Contemporâneas – DESLOCC (CNPq/UFPel) e pesquisadora do Grupo de Pesquisa Veículos da Arte (CNPq/UFRGRS).

Referências Bibliográficas:

MORTON, Donald. El nacimiento de lo ciberqueer. In: JIMÉNEZ, Rafael M. Mérida.

Sexualidades transgresoras. Una antología de estudios queer. Barcelona: Icária editorial, 2002, p. 111 a 140.

SONTAG, Susan. Notas sobre o Camp. In: Contra a interpretação. Porto Alegre: LPM, 1987, p. 318 a 337.

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