“Cotas e contestações: as ações afirmativas colocaram o combate ao preconceito na agenda nacional”

FONTE: Ipea, por Cristina Charão

O resultado intangível da implementação de ações afirmativas no Brasil, segundo analistas e representantes do movimento negro, foi colocar, definitivamente, a discriminação e o preconceito na agenda pública. “Apesar da insuficiência das ações até aqui adotadas, o sentido das iniciativas em curso é colocar em debate o tema da reparação histórica ao povo negro, algo que faz parte das reivindicações do movimento desde a década de 1980”, avalia Douglas Belchior, membro da Coordenação Geral da União de Núcleos de Educação Popular para Negras/os e Classe Trabalhadora (Uneafro Brasil)

Marcelo Paixão, economista da UFRJ, afirma que “o grande impacto das medidas de ação afirmativa foi colocar o tema das desigualdades raciais, mudando a lógica como vínhamos discutindo a questão das desigualdades sociais no Brasil”.

O debate público acerca dos efeitos do preconceito e da responsabilidade do Estado sobre a promoção da igualdade ganhou impulso na esteira da Constituição de 1988, seja pela revitalização do movimento negro no processo de discussão da nova Carta, seja pelo caminho aberto por ela para a criminalização do racismo.

Após um período em que o tema se volta para o reconhecimento e a penalização dos crimes raciais, em meados da década de 1990, começam a ser implementadas as primeiras políticas públicas voltadas ao combate à discriminação.

No início dos anos 2000, o governo federal começa a investir em projetos de caráter afirmativo.

Em 2002, o Itamaraty lançou o Programa de Ação Afirmativa do Instituto Rio Branco, órgão responsável pela formação dos diplomatas. O programa está baseado na concessão de bolsas a afrodescendentes em cursos preparatórios para o processo de seleção do Instituto. Em nove anos, 17 ex-bolsistas passaram a fazer parte do corpo diplomático.

Em 2011, o Itamaraty deu um passo adiante, criando também uma cota de vagas para negros na primeira etapa do processo seletivo. “Entre as razões que levaram o Itamaraty a adotar um programa de ação afirmativa está o fato de que a diplomacia é uma carreira que sofria de uma percepção social elitista; segundo, é uma carreira que representa o País e houve o entendimento de que essas duas questões deveriam ser enfrentadas”, comenta o primeiro-secretário do Instituto, Márcio Rebouças. “Por fim, em Durban [durante a III Conferência Mundial contra o Racismo, a Discriminação Racial, a Xenofobia e as Formas Conexas de Intolerância], o Itamaraty assumiu o compromisso de promover ações afirmativas”.

Em 2003, o Ministério da Saúde lançou o Programa de Combate ao Racismo Institucional, que durou até 2006 e buscou formar gestores para a promoção da equidade racial na área. Um ano antes, o Ministério da Educação havia criado o Programa Diversidade na Universidade, para apoiar cursinhos pré-vestibulares voltados para afrodescendentes. Foi uma primeira resposta do governo a pressões para o desenvolvimento de ações afirmativas, que cresceram a partir de iniciativas pioneiras de algumas universidades – as estaduais do Rio de Janeiro e a Universidade de Brasília (UnB) – e mesmo de órgãos públicos, como o Ministério das Relações Exteriores.

JULGAMENTOS
Em 2001, as universidades estaduais do Rio de Janeiro – UERJ e UENF – criaram cotas para negros nos seus processos seletivos, depois de um primeiro ano em que o vestibular de ingresso reservou vagas para alunos vindos de escolas públicas. Em 2003, a UnB aprovou a criação das cotas raciais, numa iniciativa inédita entre as federais. A medida é ainda hoje alvo de uma ação no STF, movida pelo DEM, que contesta a constitucionalidade de tais políticas.

“Uma pesquisa da Associação dos Juízes Federais sobre a jurisprudência em segunda instância mostra que há prevalência do entendimento sobre a constitucionalidade das cotas na educação. A OAB também se posicionou favoravelmente ao tema. Agora, devemos começar a ver vários questionamentos em relação às cotas no serviço público”, avalia Tatiana Silva, coordenadora de Igualdade Racial do Ipea”.

A reserva de 10% de vagas para negros no serviço público já é realidade em alguns Estados, como o Paraná e Mato Grosso do Sul. No Rio de Janeiro, a destinação é de 20% para negros e índios. Já em Vitória (ES), a adoção das cotas nos concursos foi contestada pelo Ministério Público Estadual e suspensa pelo Tribunal de Justiça. Uma decisão favorável do STF seria um reforço político importante a favor das ações afirmativas, reconhecendo o papel do Estado na reparação dos efeitos do preconceito e da discriminação.

IMPACTO DAS AÇÕES
Em certa medida, a reação aos avanços nas políticas voltadas à promoção da igualdade racial nos últimos anos demonstra o impacto das ações afirmativas. “Fomos acusados de criar um ‘tribunal racial’, quando decidimos exigir a comprovação da declaração de afrodescendente com fotos”, comenta Dione Moura, professora Faculdade de Comunicação da UnB que coordenou a comissão responsável pela criação do programa de cotas. “Fizemos isso porque tínhamos provas concretas de que cursos pré-vestibulares e escolas estavam incentivando seus alunos brancos a se inscreverem como cotistas para desmoralizar nosso processo de seleção.”

Outra questão levantada à época, é a suposição de que a entrada de alunos “menos preparados” através das cotas rebaixaria a qualidade do ensino nas universidades. “Acompanhamos o percurso dos cotistas e provamos que eles tinham índices menores de abandono do curso”, conta Dione. Segundo ela, estes alunos valorizam mais a passagem pela universidade e engajam-se de forma mais qualificada nos estudos.

Para Douglas Belchior, o debate sobre as cotas deixou “à mostra que a elite brasileira é racista”. Crítico em relação à limitação atual das ações afirmativas, ele reconhece que o fato de iniciativas estarem sendo levadas adiante repercute de forma positiva sobre a autoimagem e a perspectiva de vida dos afrodescendentes, especialmente os mais jovens. “O jovem negro tem, hoje, oportunidades que seus pais não tiveram, mas isso não significa que temos oportunidades iguais”, comenta. “Olhando para trás, o avanço é inegável. Olhando para a frente, vemos que não é tanto assim.”